Michelle Fernandez

No Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, diversos direitos sociais passaram a ser previstos já na carta constitucional. O direito à saúde está nesta lista de garantias  estabelecidas pelo nosso processo de retorno à democracia no final da década de 1980. Neste contexto, a Constituição passa a legitimar o direito de todos às ações de saúde. Além disso, explicita que o dever de prover o pleno gozo desse direito é responsabilidade do poder público. A partir daí, a Constituição estabelece o Sistema Único de Saúde (SUS) formado por uma rede de serviços regionalizada, hierarquizada e descentralizada e de caráter público. É dentro do escopo do SUS que irão ser desenvolvidas e implementadas as políticas públicas de saúde para atender à cidadania de acordo com os princípios de universalidade, equidade e integralidade.

Ao longo das últimas décadas, depois de 30 anos de surgimento do SUS, encontramos debilidades e fortalezas no sistema público de saúde brasileiro. Sabemos que muitos dos objetivos almejados originalmente por ele não foram alcançados, porém, por outro lado, o SUS ainda é a única porta de entrada aos serviços de saúde possível à população mais vulnerável. Estas percepções duais sobre o SUS podem ser observadas na recente pesquisa do Datafolha encomendada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para avaliar o acesso à saúde no Brasil.

Os dados apresentados revelam o quanto o Sistema Único de Saúde é importante para a população. Dos ouvidos em regiões metropolitanas e no interior do País, 88% defenderam que o SUS deve se manter gratuito, integral e universal. Nada menos que 97% revelaram ter procurado a rede pública nos últimos dois anos, principalmente as unidades de saúde, onde são oferecidas vacinas, assistência médica e de enfermagem. De acordo com o levantamento, mesmo quem paga plano de saúde recorre ao serviço público.

O desemprego acelerado dos últimos dois anos diminuiu o número de usuários de planos de saúde, aumentando as filas do SUS. Ao mesmo tempo, os cortes no orçamento da saúde deixaram o sistema único mais limitado para atender sua antiga demanda diária, além do novo público incorporado. Com a população envelhecendo e com o aumento da violência em parte pelo retorno de problemas sociais, cresceu a procura por serviços especializados, hospitalização e UTI, elevando o tempo de espera na rede pública, fator tão criticado pelos brasileiros entrevistados pelo Datafolha.

As avaliações negativas mostradas na divulgação da pesquisa reforçam o impacto da política recessiva e equivocada do governo Michel Temer, retirando sistematicamente recursos da saúde pública. Comparando os dados apresentados em maio com as duas últimas edições de pesquisa semelhante feita pelo mesmo Datafolha, fica mais do que evidente a piora na qualidade de vida e de assistência à saúde dos cidadãos. Em 2014, 30% dos entrevistados estavam na fila de espera por algum atendimento no SUS. Em 2018 são 39% nessa situação. Naquele mesmo ano, 29% desse grupo estavam aguardando há mais de seis meses por algum procedimento. Essa proporção alcança os 45% quatro anos depois.

Outro ponto a ser destacado na pesquisa Datafolha é a diminuição da proporção de brasileiros que defendem a saúde como prioridade na política. Caiu de 57% para 39% em quatro anos. Não por acaso, a preocupação cresceu em outro campo, o combate ao desemprego. Em 2014, só 4% o elegiam como prioridade. Agora, são 14%. Ainda assim, a saúde se mantém na liderança. Portanto, não há dúvida de que as políticas de saúde são prioridade para a população brasileira.

Como se pode notar nos dados apresentados pela pesquisa do Datafolha, há muito que se trabalhar pela saúde no Brasil. A oferta de serviços públicos nesta área carece de mais recursos, gestão e controle. Porém, o caminho para melhora da assistência à saúde para os brasileiros não passa pela privatização dos serviços de saúde, como quer fazer parecer alguns setores do governo e alguns grupos privados que atuam na saúde no Brasil. Temos alguns exemplos na América Latina de que a privatização dos sistemas de saúde não é necessariamente o caminho. A Colômbia é um exemplo de que privatizar a saúde não gera necessariamente aumento de cobertura. O sistema colombiano beira a insolvência com gastos de saúde que quase triplicaram sem universalidade do acesso.

Na ciência política há uma vasta discussão sobre os efeitos positivos dos instrumentos representativos para o desenvolvimento e a sustentabilidade dos regimes democráticos. A responsividade, ou a tomada de decisões políticas mais próximas da vontade popular, é fundamental para a consolidação de democracias representativas. Portanto, é fundamental que nossos representantes no parlamento escutem as demandas e necessidades da cidadania com relação aos temas de saúde e procurem respondê-las. Os temas de saúde são cruciais para os brasileiros e devem ser tratados com a devida importância por nosso parlamento.

Temos um histórico de desenvolvimento do nosso sistema de saúde desde o regresso brasileiro à democracia. Após a promulgação da Constituição de 1988, os diversos governos colocaram, em menor ou maior grau, seus tijolos para a construção do SUS: Collor sancionou as leis orgânicas da Saúde; Itamar criou o Programa Saúde da Família (PSF), extinguiu o INAMPS e avançou a descentralização; FHC ampliou o PSF, implementou a política dos medicamentos genéricos e organizou a ANVISA e a ANS; Lula montou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e implementou as políticas de saúde mental; Dilma regulamentou a lei orgânica do SUS e criou o Programa Mais Médicos, com o objetivo de prover médicos em todo território nacional com foco para as regiões mais vulneráveis. Para garantir a sustentabilidade e melhoramento do SUS precisamos de um Congresso Nacional que advogue pelas causas da saúde. O momento atual é extremamente propício para observar propostas e trazer o tema da saúde para a pauta. Temos que perguntar a candidatas e candidatos o que farão em prol da saúde pública.

Fonte: O Estado de S.Paulo – Coluna Legis-Ativo